2/10/2007

XII– De volta a vida

Dimas se vestia em seu quarto sem janelas na parte de cima de sua casa. Não era possível saber se era dia ou noite sem se olhar em um relógio. A luz que vinha do banheiro era o bastante para que ele pudesse concluir a sua tarefa de estar de acordo com o trabalho que a sua família fazia há décadas. No andar de baixo, seus irmãos e sua mãe trabalhavam.
Ele se preparava para o próximo turno.
—Dimas - disse Bento, o irmão mais novo de Dimas, ofegante por ter subido as escadas correndo para dizer algo que parecia inadiável - mamãe disse que você não precisa pegar o próximo turno. Ela disse que não está com sono, vai continuar trabalhando. Você pode voltar a dormir.
Dimas olhou para seu irmão e percebeu um ar estranho em sua face. Alguma coisa parecia ter acontecido.
—O que aconteceu Bento, parece preocupado. - disse Dimas, sem parar de se vestir e com uma expressão de profundo desânimo que demonstrava que ele já havia perdido as forças para lutar em alguma batalha e já estava entregue.
—Não Dimas, não foi nada - disse Bento ensaiando um sorriso que obviamente era falso - é que a mamãe está com pena de você, tem estado muito cansado por causa da faculdade.
—Bento, estou bem, não há nada de mal em fazer o meu trabalho. Já estou acostumado em fazer isso. Quando você ainda era uma criança eu já ajudava nossos pais, antes de papai ir embora.
—Não cara, você sabe como a mamãe é impaciente, ela disse para você não descer. Volte a dormir!
Dimas parou e olhou para o lado. O rosto de Bento na penumbra parecia altamente desesperado. Ele agora tinha certeza que algo havia acontecido, e não era algo bom. Mas como era comum, Dimas parou de se vestir e resolveu se jogar do jeito em que estava na cama. Então, disse para Bento com um ar irônico:
—Ótimo Bento, você acabou de sugar as minhas últimas forças. Vou ficar aqui e descansar. Diga a mamãe que quando ela não agüentar mais a ficar de olhos abertos que ela pode me chamar. Afinal de contas, dar os pêsames a noite toda também cansa muito.
Bento olhou para o irmão e disse:
—Tudo bem Dimas, durma um pouco, aproveite o dia, você não tem aulas hoje. São quatro horas da tarde, durma até a meia noite.
Obviamente Dimas não estava com tanto sono assim. Ele não iria dormir até a meia noite para depois engatar uma segunda marcha no seu sono até de manhã. Há muito tempo, nem nos feriados e nem nas férias ele havia tido tanto para descansar. Sabia que algum problema havia acontecido e sua mãe obviamente queria mantê-lo afastado. Devia ser algo que o afetasse. Ou não, devia ser simplesmente algo que o tiraria do sério e faria com que se metesse em mais uma briga com algum cliente que se recusava a pagar o valor cobrado. Ele sempre defendia sua mãe, nem que o cliente fosse duas vezes maior que ele.
Não imaginou muito, lembrou que as notícias ruins chegam rápido e ficou apenas aguardando até que elas chegassem em seus ouvidos.
A família de Dimas já estava no ramo funerário há mais de 50 anos. Eram os mais conservadores e também agiam dentro da religião católica, seguindo a risca todas as determinações que o vaticano estabelecia. Dimas, como seus irmãos, trabalhava vendendo os caixões, flores e na organização de velórios que aconteciam na própria capela barroca que eles haviam herdado muitas gerações atrás. Por isso, muitos corpos eram velados por lá.
Ele já estava tão condicionado a manter a expressão de torturado que mantinha por todos os lugares que visitava. Na faculdade, era conhecido por suas expressões infelizes e por suas palavras ditas em um tom baixo e suave. Ele se mostrava fúnebre em tempo integral e isso estava em seu sangue agindo como todos da sua família antes dele.
Deitado em sua cama, ele começou a se lembrar de fatos que haviam acontecido recentemente. Estranhamente ele não conseguia se lembrar de como se sentia antes de ter conhecido a menina que havia iluminado seus dias. Amélia, branca e linda como um raio de sol no cinza e preto de seu dia chuvoso. Ela passou no corredor da faculdade e ele estava lá parado diante da porta quando isso aconteceu. Não se lembrava de mais nada a sua volta.
Dimas descobriu que Amélia morava em uma antiga casa de esquina que tinha uma estória bem esquisita. Ela era velha e todos os que moravam lá também eram. Menos Amélia. Sua face era lisa como uma nuvem e seus olhos pareciam penetrar na alma de quem se aventurasse a encara-los.
Dimas se descobriu nesse dia profundamente apaixonado por ela. Ele a encontrou algumas vezes no caminho de casa e em um dia em que as aulas acabaram tarde ele teve o prazer de ver que ela estava sem companhia para ir embora.
Deitado em sua cama, Dimas se lembrava de palavra por palavra:
—Olá - disse ele com um receio enorme de ser ignorado e imaginando que ela nunca teria notado a sua presença na faculdade antes.
—Oi cara - disse Amélia - você é o Dimas, não é?
Parecia que os pés de Dimas haviam parado de sentir o chão. Ele não conseguiu evitar o sorriso que lhe apareceu espontaneamente na face. Como aquela garota que parecia ser de uma outra realidade havia lembrado do seu nome? Será que ela sentia o mesmo que e Dimas? Ele achou melhor pensar que não, deveria ser só uma coincidência. Com certeza ela deve ter ouvido seu nome em algum lugar e se lembrou, ainda mais por ser um nome pouco comum.
—Alou! Você está aí? – perguntou Amélia para Dimas que agora exibia um rosto abobalhado onde sustentava um riso aberto e contente. Dizendo isso, ela o tirou daquela espécie de transe em que ele havia entrado.
—Oi, sim, sim. Eu sou o Dimas, e você é Amélia.
—Vejo que não precisamos ser apresentados por ninguém. – disse isso estendendo a mão para um aperto.
Dimas apertou-lhe a mão e teve o prazer de sentir a macia pele de seus dedos encostando nos seus. Aquilo pra ele já valia o dia.
—Quer uma companhia para casa? – perguntou finalmente Dimas.
—Mas você não mora para o outro lado?
—Sim, mas hoje estou indo para o lado da sua casa.
—Ah, você sabe onde moro? Como?
Dimas então se corou de vergonha. Ele não sabia o que responder para ela. Desconversou. Disse que era um prazer acompanhar uma senhorita até a sua casa. Ela achou estranho o tom, mas gostou dele.
Mas Dimas não sabia muita coisa de Amélia. Com a sua crença extremamente católica, ele se sentiu em meio a uma batalha quando veio a saber na conversa que tiveram naquela noite que ela estudava uma religião antiga, pagã e condenada pelo catolicismo. Ela chamava de “felicidade em frascos de vento” tudo aquilo que ela dizia ser a sua inspiração de viver. Olhava para Dimas com um olhar tão especial que ele não conseguia mais parar de lembrar dos olhos verdes que ela tinha.
Dimas se manteve quieto por muito tempo sobre a garota que apelidou de “A Menina do Dia”, porque, ele dizia, foi ela quem deu a ele o dia mais feliz de sua vida, o dia em que eles conversaram pela primeira vez e ele se sentiu mais uma pessoa no mundo, não menos que isso.
De volta a seu quarto, em uma pequena pausa em seus sonhos que eram repetidos diariamente como mantras sagrados, Dimas olha seu relógio e vê que já haviam se passado quatro horas. Ele acha que dormiu, mas não, estava preso em pensamentos que desta vez estavam sendo lembrados com uma intensidade muito maior do que das outras vezes.
Durante várias outras caminhadas que Dimas acompanhou Amélia, mesmo tendo que andar tudo de volta até a sua casa, eles conversaram sobre vários assuntos, inclusive um dia especial em que ela deveria encontrar o segredo de sua vida. Um dia aguardado há muito tempo, por cada um que espera saber mais sobre si mesmo.
Eles nunca se beijaram e sua relação não passou e uma profunda amizade. A Menina do Dia o chamava depois das aulas para irem juntos caminhando e ambos conheciam mais dos mundos um do outro. Ela dizia muitas vezes que nada o prendia ali, que estava livre para fazer o que quisesse em toda a sua vida. Dizia isso porque Dimas parecia estar sempre preso no mesmo lugar. Ele não gostava de viajar e tinha medo de sair de perto de onde ele se sentia mais seguro, a sua casa. Em certa ocasião ela disse para ir para a Islândia. Ele disse que gostaria e eles riram daquele momento onde parecia que ele finalmente havia resolvido mais esse seu problema.
E ele entendeu por ela que deve-se aprender algo de bom no que é ruim, deve-se retirar da tragédia o significado da vida. Deve-se tirar da doença a força para se reerguer. Deve-se tirar da solidão o consolo de seu próprio coração. A Menina do Dia era assim, uma pessoa extremamente iluminada.
Bento um dia encontrou uma foto que eles tiraram juntos e perguntou para Dimas se ele havia finalmente encontrado uma namorada com um tom meio irônico. Ele disse que não, mas que gostaria que ela fosse a sua namorada.
No dia em que eles se despediram ele ficou sabendo de algo diferente. Ele encontraria muito de si mesmo, em breve.
Abriu os olhos. Um susto que foi acalmado com o olhar no relógio. Eram dez horas da noite. Ele havia descansado bastante. Se lembrou dela e como se fosse um golpe repentino o entendimento lhe bateu. Não podia ser!
As notícias ruins sempre chegam rápido. Ele já sabia da má notícia antes mesmo de pensar em tudo o que havia pensado novamente. Colocou, ainda na penumbra, os sapatos nos pés sem meias. Vestiu o casaco e resolveu que não se importava mais com o estado do seu cabelo, ele iria descer assim mesmo. Abriu a porta que se chocou contra a parede fazendo um estrondoso ruído.
Bento estava sentado no último degrau da escada. Dimas desceu sem perceber os degraus, tamanha era a sua pressa. Rezava milhares de vezes para Deus, pedindo em milésimos de segundo que não fosse verdade.
—O que foi Dimas – perguntou Bento de forma grave.
—Saia da minha frente irmão.
—Não Dimas, fica aqui cara.
Uma lágrima pelo canto do olho escorreu. O sinal de toda a compreensão. Não adiantava segurar, ele iria saber cedo ou tarde. Bento permitiu que ele passasse.
O desespero se transformou em uma espécie de silêncio em sua alma, nenhum barulho era ouvido por Dimas. Ele caminhou até a sala do confessionário, abriu a porta que dava para o altar da igreja passou por ela sentindo um infinito peso cair sobre seus ombros, o mesmo peso que deveria ser erguido a qualquer custo, pois dele ele retiraria a força para agüentar outras tragédias como aquela.
Olhou para o centro da igreja e lá ele encontrou novamente os olhos que haviam marcado a sua alma, só que agora eles estavam fechados. Amélia estava morta, nada mais valia a pena. Dimas perdeu o equilíbrio, Bento vinha logo atrás e o segurou.
—Calma irmão – disse ele – estou aqui pra ajudar.
Dimas andou até o corpo. Ele olhou pra ela lembrou-se de tudo mais uma vez, como um mantra. Ele então entendeu que suas almas estavam ligadas para sempre.
Branco o disse que ela havia sido morta, no dia escolhido, por tentar salvar um animal. Dimas sorriu. Ele a encontraria com certeza em algum lugar em algum tempo que ninguém poderia saber, pois as almas gêmeas estão eternamente interligadas.
E sem saber, o dia escolhido fez o que deveria fazer. Uniu os fragmentos de uma única alma que estavam espalhados. Amélia, Lucia (ou Lucy), Noah (ou André), Branco, Davi, Amyr (ou Zamaré), Rudi e Mina, Patrícia e Beatriz e muitos outros fragmentos de outras almas que estavam espalhados também. Porque todos somos um e respiramos juntamente com o planeta em que vivemos. As árvores, o céu, os rios e mares são o mesmo ser vivo que cada um de nós. O sal e a água do mar, a força que as plantas retiram do chão, a luz que chega até aqui e o ar que venta nas asas de uma borboleta mas que se tornam furacão do outro lado mundo, tudo isso está dentro de cada um de nós e nós apenas resolvemos nos esquecer disso.
Durante semanas Dimas não conseguiu comer direito e nem dormir. Mas quando finalmente ele viu o que isso tudo significava ele resolveu se libertar. Resolveu carregar o peso que havia adquirido mas de cabeça erguida. Não faria como João que lamentava a morte da esposa diariamente se deixando ser vencido pelo peso do acontecido.
Dimas saiu pela porta da frente em uma bela manhã e respirou fundo o ar que o rodeava. Olhou pra trás e viu a sua mãe com a cara de sempre, a de que dá os pêsames e disse:
—Mãe, estou indo viver, cuide de tudo enquanto estou fora.
E saiu, viajou para longe e descobriu que não tinha raízes, estava em casa onde quer que fosse. Descobriu que o peso que tinha que levar ficava mais leve a cada dia e retirou de todo o mal que encontrava na sua vida a parcela de bem.
E enquanto a aventura de viver durava, no som do walkman de Dimas, uma música do Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band era a trilha sonora de suas descobertas. Exatamente a terceira faixa do álbum...

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