2/09/2007

III – A estrada e o sol

Em um caminho que o levava rapidamente para casa e que também continha as mais bonitas árvores de sua cidade, André resolveu entrar com o seu carro para voltar de mais um dia normal onde nada demais acontecera. As árvores continuavam no mesmo lugar de sempre e o sol se pondo, da mesma maneira todos os dias. Era uma das poucas coisas que não deixava a sua vida repetitiva mais triste.

Ele costumava pensar que para ele existiam apenas dois estados de espírito:

  1. Quando haviam problemas de mais para preocupar-se e que tiravam sua cabeça da normalidade, não restando muito tempo para si mesmo;
  2. Quando os problemas não existiam e ele os criava.

Fechou os olhos por dois segundos e sentiu o vento que entrava pela janela de seu carro e começou a agradecer em silêncio a Deus. Agradeceu por tudo o que tinha conquistado até então; pela saúde de todos os seus amigos e de todos os parentes mais importantes para ele. Aproveitou para implorar uma nova postura para si próprio, pois ele se achava ridículo por não estar feliz.

Resolveu fechar de novo os olhos, só que agora estava mais difícil de reabri-los, pois o vento acariciava seu rosto, seus pés pareciam cada vez mais confortáveis. Acelerou de olhos fechados e esperou que a brisa aumentasse. Ele ouviu uma música dentro dele mesmo, algo que não sabia que existia ali e sentiu-se livre. Finalmente André abriu os braços e contemplou da maneira mais aprofundada possível o melhor sentimento que se lembrava de ter sentido.

A rua foi chegando ao final e o sol estava ligeiramente mais baixo quando ele chegou a uma avenida de mão dupla. Os olhos permaneceram fechados, ele não tinha vontade de enxergar agora, só queria o aconchegante escuro de suas pálpebras, tão aconchegante e tão profundo. Tão silencioso.

A linha de ônibus que levava pessoas cansadas de volta para suas casas estava no horário certo. Acabara de sair do ponto onde haviam subido mais oito passageiros aproximadamente. Então, André veio, leve como uma pena e esmagou-se fortemente contra a lateral do ônibus que estava completamente lotado. Voou pelo pára-brisa quebrado e encontrou o frio retorcido da lataria. Caiu sobre o que restou do seu carro.

Dizem que o cérebro de uma pessoa que morre fica cerca de quatro minutos ainda vivo. Então, foi isso que André pensou, na possibilidade de sua morte. Na possibilidade de que essa sensação de liberdade nunca mais terminasse.

Finalmente, depois de algum tempo seus olhos se abriram. Sua pele estava um pouco mais escura, como se ele estivesse pegando sol todo o tempo em que esteve supostamente desacordado. Ele lembrava-se apenas que havia se chocado fortemente contra um ônibus que não tinha nenhuma culpa de estar no lugar certo, na hora em que deveria estar, mas que seria muito bom se não estivesse.

“Tomara que ninguém além de mim tenha se ferido, eu realmente fui muito imprudente e acabei esquecendo tudo a minha volta”.

Esse era o pensamento mais gritante em sua mente naquele momento. Mas ele finalmente havia parado de pensar quando encarou a cor de suas mãos e a aspereza de seus dedos calejados. André não estava em uma cama de hospital, nem em sua própria cama, ele estava deitado do lado de uma mulher loira que dormia profundamente. Os cabelos dela cheiravam muito bem e o sol entrava estranhamente pela janela, parecendo mais um sol de entardecer do que um sol matutino. Ele se levantou e continuou a se surpreender quando notou que seus cabelos estavam de um tamanho que ele não costumava usar, estavam completamente diferentes e quando finalmente olhou-se em uma superfície espelhada, notou que não somente os cabelos estavam diferentes e levemente grisalhos, como também toda a sua face havia sofrido uma grandiosa alteração no período em que ele achou estar em coma.

Ele pensou nas coisas mais absurdas possíveis, inclusive na possibilidade de estar sonhando, ou, de que a vida que ele achava ser verdadeira fosse na verdade uma alucinação. Caminhou completamente absorto para outro cômodo que não parecia ser uma casa, e sim, um trailer parado no meio do nada, onde, com outros trailers, formava um estranho condomínio aberto em meio a uma infinidade de poeira e calor. Procurou água – estava imensamente desidratado – e encontrou um pouco no frigobar. Sentou-se em uma cadeira que estava diante de uma pequeníssima mesa e começou a pensar com os olhos fixos em uma parede que não tinha nada, nem um quadro e nem uma pintura feita. André notou que estava mais alto e mais robusto e que andava pela “casa” sem nenhum tipo de roupa. Isso parecia muito estranho, pois se acordou ao lado de uma mulher e estava sem roupa, algo de interessante deve ter acontecido na noite anterior. Mas, surpreendentemente ele não se lembrava de nada além da forte batida contra a lata fria do ônibus e os seus pensamentos sobre a morte.

Uma idéia então lhe caiu como um raio na mente: deveria consultar um relógio e um calendário. Precisava saber quanto tempo esteve fora. Procurou pela casa e foi somente no braço da mulher ainda adormecida que ele encontrou um relógio que marcava além das horas, a data exata. Era o mesmo dia, quase na mesma hora. Era o mesmo ano, o mesmo século! O que estava acontecendo?

Os olhos da mulher se abriram um pouco, o bastante para enxergar o rosto de André e perceber o seu sentimento desconcertante. Ela esboçou um leve sorriso e André notou que aquela atitude lhe fazia um bem tão grande que ele conseguiu até sentir prazer ao ver o sorriso da mulher. Ela parecia ter por volta de trinta anos e seus olhos eram lindamente verdes, um contraste gritante com a paisagem lá fora. Finalmente ela abriu a boca e disse algo. Ela disse que o amava e entendia que ele ainda era casado e que esperaria o quanto fosse pra ser dele completamente. Mas a frase não assustou tanto André, apesar dele nunca ter sido casado e de ter bem menos idade do que estava aparentando agora. O que mais chamou a atenção dele foi que a frase foi totalmente pronunciada em inglês! Ele sabia um pouco de inglês, algo raso demais para entender tão perfeitamente a frase balbuciada por ela.

Ele abriu seus lábios e, sem pensar, disse que a amava tanto que nada poderia deixá-los separados, e disse tudo em um perfeito inglês cheio de sotaque que ele nem imaginava possuir.

André se sentou na cama e encostou a mão na testa em uma profunda demonstração de confusão. Ela se levantou e deixou o lençol deslizar por seu corpo, fazendo aparecer o seu corpo nu, como o dele, e o abraçou pelas costas deitando sua cabeça na nuca de André e enlaçando sua cintura com as pernas.

— Oh Lucy, eu amo seu corpo, amo a leveza de sua pele. Você era exatamente o que eu busquei toda a minha vida...

Pronunciando essas palavras, André percebeu que ele não era mais André. Fechou os olhos e não procurou mais respostas. Ele sabia pra onde deveria ir e porque. Sabia que finalmente a eterna liberdade que esperou a vida inteira tinha se tornado verdade. A estrada agora estaria livre o bastante para que corresse de olhos fechados, sentindo a brisa da tarde em seu rosto e o Sol a esquentar de maneira acolhedora o seu coração. Se lembraria pro resto da vida do tempo que se chamava André e da sua procura silenciosa por algo que todos procuram, mas que ninguém realmente está disposto a correr os riscos para que a busca chegue a um fim. Algumas pessoas sonham com algo, mas desejam nunca conseguir chegar até seus objetivos, isso acontece porque a busca as preenche tanto que a necessidade da conclusão desta desaparece por completo. Elas costumam sentir-se incompletas, mas estão na verdade mergulhadas no mais doce objetivo de suas vidas.

Noah (como agora André era chamado) acordou em mais uma de suas manhãs e percebeu que Lucy era a parte mais importante de sua liberdade. Alguém que fazia parte de sua busca e que estranhamente foi dada a ele de presente. Nessa mesma manhã, quando completava 65 anos (muitos anos depois de ter deixado de ser André), ele abriu um jornal antigo e viu uma foto que o deixou sem falas. A manchete dizia que um brasileiro havia acordado do coma vinte e três anos depois. Ele falava e andava naturalmente e apresentava uma força de vontade incrível só que havia esquecido tudo, absolutamente tudo da sua vida antes do acidente. Ele sentia-se feliz pois dizia que havia encontrado finalmente algo que procurava a vida toda: uma família.

Nenhum comentário: