2/06/2013

Um conto feito por mim em 2005. Eu sempre escrevi para mim mesmo, como uma ordem de "ACORDE SEU IDIOTA". Esse conto vem para afirmar isso, para mostrar pra mim mesmo que é preciso começar a viver antes que a vida chegue ao fim, que é preciso olhar para fora e para de se preocupar com o mundo interior.


IX - O Abutre

            O sol brilhava como todos os dias mas ele sabia que cada pessoa podia ver o sol de maneira completamente diferente assim como todas as outras coisas que existem. Para ele, o sol era nada mais que a estrela central de nosso sistema solar, não lhe inspirava a poesia e nem à liberdade.
            Rudi gostava de existir em seu mundo extremamente limitado onde toda e qualquer aventura estava além de suas forças. Caseiro, era guiado por sua hipocondria que falava muito mais alto que todas as suas vontades mais absurdas.
            Em um dia mais que normal, ele caminhava até o seu trabalho sem pensar muito em coisas importantes mas preso em uma ansiedade monstruosa que lhe vendava os olhos. Rudi não tinha amigos e se pudesse não trabalharia também, ficaria em casa, longe do convívio com qualquer ser humano. Em sua caminhada diária (ato que para ele era a única coisa que o salvava de problemas mais sérios de saúde) ele não costumava ver muita coisa diferente. Um cachorro latia do outro lado da rua e uma mulher grávida estava agora sentada ao meio-fio, tomando água de uma garrafa térmica. Nesse momento, Rudi percebeu que a sua perna direita havia ficado completamente dormente, uma dormência repentina e extremamente forte. Era impossível ficar de pé. Ele caiu e ficou ali sem saber o que fazer. Com certeza a mulher do outro lado da rua achava que era mais um bêbado, ainda mais pelo jeito desleixado que Rudi costumava se vestir.
            Não podia gritar pois não queria as mãos sujas de ninguém tentando lhe ajudar. Rudi pensou que era finalmente o momento de sua morte. Estava passando muito mal mesmo. Seu estômago produzia um forte desconforto, não dor, mas algo tão incômodo como ou até mais forte.
            A boca se abrira para um grito que não saiu. Metade do corpo de Rude estava completamente imobilizado por uma coisa que ele não sabia o que era. Ele percebia os dedos frios de uma morte anunciada diariamente encontrarem finalmente o seu corpo. Estava caído na rua, não sabia o que fazer.
            Naquele momento, ele se lembrou de tudo o que havia feito as pessoas que o amavam e soube que de uma forma ou de outra, tudo o que fazemos volta pra nós de forma amplificada.
            Há alguns anos Rudi era casado com Mina, uma garota realmente muito companheira e bonita. Tudo o que Mina mais queria era ter um filho mas Rude não queria perpetuar a sua doença, ele não queria um herdeiro para toda a sua fortuna, para tudo o que tinha: seus enigmáticos problemas de saúde.
            Ele gritou com Mina quando ela tentou conversar com ele em uma noite de primavera. A luz enfraquecida do abajur aclimatava o quarto para tudo, menos para as palavras que ela estava ouvindo. O choro lhe veio como uma explosão de tudo o que estava reprimido em muitos anos de casamento. Ela gritou com ele como resposta, e mesmo estando tarde da noite ela resolveu ir embora deixando-o sozinho com as suas companheiras invisíveis.
            No dia posterior ele resolveu se castigar de forma quase impensada parando de comer. Não houve fome naquela semana e com certeza mais uma enxurrada de doenças levava embora a sua vida.
            As árvores plantadas no jardim, as flores que cresciam maravilhosamente sem a ajuda de ninguém, a lua em sua beleza enigmática, nada era apreciado por Rudi. O gosto de metal da civilização era bem mais forte que a poesia viva que o circulava. Seus irmãos e seus pais estavam afastados pois ele não os queria por perto. Mina havia ido embora. A única coisa que ele realmente amava era o seu mundo, um amor negro e vazio que o sugava os minutos.
            Caído ali no chão, Rudi se conscientizou que pela primeira vez na vida estava realmente tendo um problema, algo que não era gerado pela sua mente, mas que estava dentro de seus órgãos. Ele não queria pensar, pensar fazia o seu intestino ficar mais esquisito e aumentava a grande força do sentimento que estava tendo. A mulher grávida já havia se convencido de que não era um bêbado e sim um jovem senhor tendo uma espécie de convulsão. Ela foi em sua direção e começou a gritar por ajuda.
            Rubi estava vazio por dentro, ele queria sentir a mão de Mina em seus cabelos, como ela gostava de fazer quando ficavam abraçados. Queria sentir o cheiro das flores que sempre estiveram ali e nunca foram aproveitadas. Queria naquele momento poder abraçar algo que nunca desejara, um filho seu.
            A dormência se tornava tão grandiosa que ele não sentia mais o seu estômago e nem o seu intestino. Os braços e as pernas estavam paralisados assim como todo o resto de seu corpo. O rosto virado para cima, mantinha os olhos fechados em sinal de profunda ausência. Rubi estava se preparando para morrer.
            E como último ato, como se fosse uma rápida corrida de volta para uma última espiada, ele juntou toda a força de vontade que ainda lhe restava e abriu os olhos. Ele viu o sol, como nunca tinha visto até aquele dia. Viu a sua própria vida emanando de estupenda força que brilhava no céu e nos raios que saiam dele. Viu a liberdade que ele tinha de iluminar tudo sem precisar pedir. Rubi estava maravilhado com o azul do céu, com as esporádicas nuvens que o adornavam e com as aves que voavam alto. Viu também as folhas de uma árvore que estava perto balançando enquanto o vento batia nelas como uma carícia constante.
            Os olhos foram fechando devagar. A visão de pessoas tentando lhe ajudar era a sua derradeira imagem. Mas uma coisa aconteceu sem que ele pudesse entender, o som dos galhos daquela árvore que havia visto segundos antes estavam sendo percebidos por ele agora. E como eram bonitos e suaves aqueles sons. Eram a única coisa que preenchia a sua mente além dos momentos não aproveitados da sua vida que lhe passavam como flashs. Os sons foram ficando cada vez mais constantes quando ele ouviu uma sirene de ambulância. Não adiantava, Rudi já se sentia sem concerto por causa dos danos em seu corpo que com certeza deveriam ser muitos.
            Sentiu mãos que o seguravam e percebeu que novamente havia recuperado o tato. Tentou abrir os olhos e conseguiu, mas a visão foi apenas o cinza de um teto. Não sentiu mais nada por muito tempo.
            —Rudi. Acorde Rudi. Abra os olhos por favor!
            Em seu estado de torpor ele apenas reconhecia levemente uma voz em seus ouvidos. Não se lembrava de nada por muito tempo enquanto esteve perdido em sono constante. De repente, a sensação de estômago vazio e um gosto estranho foram percebidos e o ar resolveu parar por um instante, logo quando ele mais precisava.
            Rudi abriu os olhos e viu um rosto entristecido lhe velando. Era a sua mãe. Ao seu lado estava Mina e um olhar de misericórdia. A doença sempre trazia todos de volta, sempre o tornara o centro das atenções e era isso que ele queria de forma impensada.
            Ele olhou em volta e percebeu que estava internado e parecia que estava ali por muito tempo. Tubos saíam do seu corpo e entravam em máquinas. Suas mãos estavam magras e sua pele extremamente branca. Rudi, pela primeira vez percebeu a realidade do que é estar doente e incapaz.