4/28/2009

O Livro da Carne - I


1.Como matar de verdade


Se eu pudesse retornar ao meu passado para passar uma borracha em algumas coisas que fiz, eu com certeza faria isso com pequenos momentos onde eu pequei contra o meu maior mandamento de hoje em dia: não amar.
Sinto-me imensamente culpado por ter dito que amava minha mãe e por tê-la abraçado tantas vezes pra sentir o cheiro reconfortante de sua pele. E minha mulher, sinto muito por tê-la amado demais, por ter
dado a ela dois filhos lindos que eu olhava todos as madrugadas enquanto dormiam. Sinto muito por ter pena de todos os que eu vi sofrendo e, por uma espécie esquisita de amor, ter tentado amenizar seus sofrimentos.
O amor enfraquece a alma e como era de se esperar, me deixou tão fraco quanto um graveto seco no chão que se parte e se esfarela quando uma criança pisa em cima dele.
Já fazem dois anos que eu me tornei uma espécie de nômade da cidade. Eu nunca paro por muito tempo em um lugar. O pouco dinheiro que consigo é realizando serviços na maioria das vezes desagradáveis demais para que alguém possa querer fazer. Eles me pagam e eu simplesmente transformo toda aquela nojeira em comida no final do dia.
Assim que eu resolvi recortar o amor fora da minha vida eu tive que tomar a decisão de nunca mais parar de andar. Nunca mais me sentar num ponto de ônibus e puxar conversa com uma garota bonita que poderia se tornar uma nova namorada, um novo caso, uma nova mulher ou uma nova mãe dos meus novos filhos. Não queria ouvir velhos contando suas histórias de vida no metrô enquanto eu voltava pra meu apartamento barato alugado em qualquer lugar sujo o bastante para ninguém querer saber onde eu estava.
E quando um novo laço de amizade se formava sem minha intenção, num momento em que eu abaixava a guarda, eu mudava de novo de cidade. Ia pra longe.
Mudei meu nome e minha forma de viver. Eu tenho meus propósitos, vou contar tudo aqui.
Eu cresci numa família áspera e tentava suavizar essa aspereza no passar da minha vida. Vi meus familiares tentando se matar várias vezes, gritando e se unhando até que ficavam semanas sem se falar sob o mesmo teto, desejando a morte uns dos outros. Só a minha mãe era doce o bastante para não ficar amarga como todos os outros. Durante 25 anos eu vivi sob ameaças de morte e todo o tipo de maldade que poderia ser feita entre seres humanos, e o mais absurdo, éramos todos primos,
avós e tios...
Eu tentava sem parar fazer com que o ódio fosse extinto daquele âmbito, mas o que eu conseguia era algo efêmero e raso que não durava sequer algumas horas. Então eu me cansei e resolvi ir morar em outra casa, com a minha futura esposa. Sim, eu senti um imenso amor crescendo dentro de mim e eu não o mantive entre paredes, eu o deixei crescer e florear. Foi quando ela engravidou dos gêmeos. Nosso dinheiro não crescia em árvores, mas cortando muitos luxos nós conseguíamos providenciar o básico da alimentação, vestimenta e educação. O resto, todas as lacunas matérias eram docemente preenchidas com amor incondicional e com dedicação familiar.
Mas é muito complicado, eu, uma ser altamente enfraquecido pelo amor, deixar de sentir um remorso que crescia e me corroia feito um câncer maligno quando eu pensava nos meus parentes que se odiavam (meus irmãos e pais) e principalmente na minha mãe, que querendo formar uma nova família, se associou ao inferno.
Fiquei sabendo que uma guerra havia realmente sido declarada entre eles. Meus tios querendo arrancar os olhos dos meus irmãos, meu pai querendo esquartejar meus avós paternos (sim, era apenas o sangue paterno o contaminado pela raiva e pelo ódio). Na semana seguinte, tomei conhecimento que um dos meus primos havia sido esfaqueado pela minha avó e isso fez com que ela perdesse muito sangue pois ninguém permitiu que a ambulância o levasse para o hospital. Quando lá chegou, em estado de choque, ele passou pelo infernal tratamento público que nosso país oferece, mas morreu antes de conseguir repor seu sangue.
Diante disso, eu, temendo pelos meus familiares mais próximos, tentei apaziguar todos. Conversei com cada um deles, mas encontrei apenas armas apontadas em minha direção e ameaças a mim e a todos da minha família.
Eu me lembro como se fosse hoje quando eu cheguei à casa dos meus pais e lá estava uma guerra sendo travada. Meus irmãos choravam com seus olhos esbugalhados de ódio enquanto lutavam contra uma reunião de primos e tios que se organizaram pra acabar com a gente. Ninguém deveria sair vivo. Entrei correndo. Meu pai sangrava pela boca e tinha uma das pernas esfoladas, mas ele não parava de golpear com o facão. E quando eu cheguei à cozinha, próximo ao fogão eu encontrei o que eu mais temia: minha mãe, ou o que restava dela, caída ao chão, sem braços ou pernas e ainda agonizando. O chão branco da cozinha se tornara vermelho, uma poça caudalosa de sangue. Joguei-me ao chão e olhei em seus olhos. Eu vi quando suas pupilas dilataram.
Eles haviam encontrado minha mãe sozinha em casa. Resolveram tortura-la antes de dilacerarem seus membros.
Eu senti algo escorrendo de mim, como uma artéria aberta, jorrando e jorrando, enquanto outra substância me preenchia. Esta agora, era negra e quase sólida.
Levantei-me devagar como se fosse uma criatura feita de sangue, pois estava coberto com o liquido que coloria o assoalho da cozinha. E aí eu perguntei silenciosamente pra deus o que ele queria me dizer com essas atitudes. Eu olhei pra cima e só vi o teto de concreto, sem nenhum deus para me responder qualquer pergunta, sem nenhuma palavra aconchegante ou calmante naquele meu momento de necessidade.
O que aconteceu logo em seguida foi que todos os meus músculos se relaxaram e uma incrível paz interior me dominou.
Os barulhos da guerra continuavam lá fora. Gritos, meus irmãos chorando enquanto lutavam, meu pai golpeando em silencio, totalmente fora de si.
Me abaixei na dispensa enquanto o sangue do chão coagulava entre os dedos dos meus pés descalços. Lá dentro encontrei um pequeno estoque de álcool. Seis garrafas fechadas e uma já aberta com um pouco mais da metade do conteúdo. Peguei um balde pequeno e o enchi com todo o álcool que encontrei. Peguei pedaços de jornal e também os fósforos e subi as escadas indo em direção à varanda. Lá de cima, com o coração extremamente confortável eu visualizei toda a guerra. Joguei todo o conteúdo do balde sobre meus tios e primos, como se fosse uma espécie de benção que eu lhes conferia com aquele conteúdo benzido pelo puro ódio.
Alguns não perceberam, mas antes que pudessem fazer alguma coisa, eu já estava com um chumaço de jornal aceso em minha mão. É impressionante como o fogo produzido pelo álcool produz uma chama quase invisível. Era percebido que havia fogo, pois todos gritavam desesperadamente enquanto suas roupas se dissolviam e o cheiro de cabelos chamuscados e pele queimada subia pelo ar... eu me sentia como um artista que dava os últimos retoques na sua melhor tela.
Enquanto ainda queimavam e eram dilacerados pelo meu pai e irmãos, eu saí andando, largando o grande amor que eu sentia pra trás, deitado morto na cozinha.
Passei em casa e ninguém estava lá. Peguei algumas roupas, coloquei na mochila. Não deixei bilhetes nem presentes, simplesmente parti.
Creio que muita gente deve ter achado que eu fui embora para fugir da polícia. Mas eu estava fugindo do amor e do afeto que ainda poderia restar em minha vida. E assim eu continuo pulando de cidade para cidade, trabalhando nos lugares mais fétidos que encontro e que me paguem o mínimo para comprar cigarros e um prato de comida por dia. Não quero amigos, não quero amores, não quero viver muito. Só quero aceitar a herança que corre nas minhas veias, o ódio e a sede pelo sangue.