1/02/2007

I – Lúcia e o céu de diamantes

Certa manhã Lúcia acordou completamente disposta. Parecia haver algo a colocá-la pra cima, alguma razão que lhe era desconhecida até então. Na verdade, ainda era curto o tempo em que estava acordada, uma questão de segundos. Observou o teto e tentou se lembrar vasculhando os acontecimentos do dia anterior para conseguir se localizar diante de seu sentimento ainda inexplicado. Nunca havia reparado que o teto logo acima de sua cama era meio irregular e isso fazia com que se formassem pequenas sombras, que foram conquistando a atenção de Lúcia, onde ela conseguia identificar algumas figuras pouco comuns para um teto. Viu um homem com a garganta fina demais para o tamanho de sua cabeça, de olhos fechados e boca ligeiramente aberta. Viu uma carruagem simplória e também uma sombra que a lembrava o seu pai. Não era na verdade o rosto dele, mas sim, uma forma abstrata que a fazia se sentir bem, confortável e feliz.
Alguns minutos haviam se passado e Lúcia ainda não tinha saído da cama enquanto contemplava o teto e acariciava sua barriga por baixo da roupa e dos lençóis. Lentamente levantou-se e notou que não estava em seu quarto normal, e sim em um lugar que tinha uma disposição física muito parecida, mas com móveis totalmente diferentes. As cortinas das janelas estavam com estranhos bordados demasiadamente complexos e o barulho dos carros não invadia seus pensamentos. Olhou seu relógio de pulso e notou que não estava lá, como também que a marca deixada no braço pelo relógio não mais existia.
— Será que estive em coma? - pensou consigo mesma.
Os pensamentos e as hipóteses percorriam seu cérebro rapidamente e ela teve um medo absurdo de descer as escadas e encontrar tudo diferente. Então ela decidiu procurar um espelho. Levantou-se e correu para o único armário que havia agora no quarto. Abriu a primeira porta e encontrou nada mais nada menos que suas roupas normais dobradas em uma caixa de vidro. Havia algo escrito em um bilhete que estava dentro da caixa, mas ela não conseguia ler. Notou apenas que era a sua própria letra em um papel apagado pelo tempo. Aquele era seu vestido preferido dentro da caixa e com certeza ela teria que se vestir para sair do quarto, para saber o que havia acontecido durante a sua noite de sono. Ela pegou a caixa, que parecia não ser aberta há muito tempo, e retirou de dentro um vestido preto e informal, com pequenas flores em lilás e um decote simples e pequeno. Notou que o vestido estava com uma textura muito diferente da normal e percebeu que ele estava velho. Parecia ter décadas!
Lúcia encontrava-se agora sentada totalmente absorta na beira da cama com o vestido em sua mão esquerda, a mesma que não tinha mais o anel de casamento.
Olhou para ela própria e notou que em seu antebraço, onde havia tatuado o nome de sua filha, Angélica, agora podia-se ler seu próprio nome, Lúcia.
A fome começava a aparecer e ela não sabia mais o que pensar quando finalmente encontrou o espelho lhe contaria o que estava acontecendo.
Olhou-se. Seus dedos tocaram levemente os lábios como sinal de espanto. Seus olhos negros, agora verdes, contavam coisas que ela não poderia nunca em sua sã consciência conceber. Lúcia havia rejuvenescido pelo menos trinta anos em uma única noite de sono. Havia mudado a mobília e a disposição do quarto, colocado cortinas estranhas nas janelas e aparentemente reformado as paredes, principalmente o teto. O mais intrigante era a tatuagem que havia mudado e agora a cor de seus olhos. Lúcia se manteve calada até o momento de pronunciar um “ai meu deus”. Incrivelmente percebeu que sua voz não era mais a mesma, estava bem mais aguda e suave e trazia uma espécie de paz que ela não sabia explicar exatamente.
Por alguns momentos Lúcia pensou que talvez a sua forma antiga nunca tivesse existido, era tudo fruto de um sonho que havia tido durante a noite, quando finalmente encontrou em cima do criado mudo que estava ao lado da cama um livro, uma biografia. O livro chamava-se “Lúcia e o céu de diamantes” e tinha como autora ela mesma! Ela não se lembrava de ter escrito um livro. Foi passando as páginas até encontrar a única foto da autora na parte de dentro da contra-capa. Nessa foto, ela se via exatamente como estava imaginado que era antes de se olhar no espelho. Até a tatuagem estava lá, da maneira certa. Nessa foto, ela aparecia da cintura pra cima e foi quando percebeu que não se lembrava de como eram os seus antigos pés. Olhava fixamente para eles e não sabia dizer se estes eram iguais ou diferentes dos anteriores.
O medo já tomava conta dela por completo quando ela resolveu continuar lendo o livro de onde estava marcado:

“Nas horas mais pesadas de minha vida eu me imaginava como outra mulher, alguém bem mais jovem do que eu, que conseguiria enfrentar esses problemas sem cair nas lágrimas e nas fraquezas que me atormentavam. De olhos verdes e cabelos lisos eu caminhava com passos cada vez mais firmes sobre a terra espinhenta que me servia de país e não abaixava a cabeça pra nada. Me chamava de Patrícia e essa personagem se tornava tão real que em meus sonhos, que sempre começavam com um olhar perdido para o teto pintado de branco em cima da minha cama. Eu conseguia me ver em mundos completamente diferentes. Eu era duas, sendo apenas uma...”

O que dizer dessa passagem? O personagem que ela mesma criara tinha finalmente se tornado realidade ou Lúcia estava presa em mais um desses sonhos.
Nesse momento Lúcia ouve passos na escada e uma mulher abre a porta. Uma face muito conhecida a observa e a deixa cada vez mais intrigada, principalmente depois de ter percebido que em seu braço havia também uma tatuagem, e nessa estava escrito Patrícia.
— Bom dia minha filha – disse a mulher – você dormiu bem?
— Sim, mas, quem é você e o que eu estou fazendo aqui?
— Calma, tenho certeza que tudo será explicado, minha filha.
— Pare de me chamar de “minha filha”! Não sou sua filha. Minha mãe chamava-se Darcy e já é falecida.
— Darcy foi minha querida avó que agora está no céu e você não é Lúcia...
— O quê?
A mulher recuou um pouco e pegou um álbum de fotografias que parecia estar ali por algum motivo ainda não entendido por Lúcia.
— Meu nome é Angélica – disse a mulher.
— Angélica é o nome de minha...
— Você é que é minha filha Patrícia.
Lúcia não sabia mais o que fazer, aquela mulher que estava lhe chamando de Patrícia (o nome fictício que havia inventado alguns anos antes) dizia ser Angélica, sua filha. Ela havia aberto um grande álbum de fotografias onde apareciam Lúcia, Angélica (mais velha do que o que ela podia se lembrar) e uma pequena menina que a mulher disse ser ela mesma, ou seja, Patrícia.
Mas como isso poderia acontecer? Lúcia pensava estar em um sonho, algo como um hipnotismo do qual não conseguia se livrar. A foto provavelmente era fruto dessa sua alucinação. Mas como explicar a figura de Angélica mais envelhecida, agora parecendo uma mulher, se na verdade ela era adolescente?
Então, depois de alguns minutos concentradas na fotografia, Angélica quebra o silêncio:
— Você se lembra de Guilherme?
— Sim, eu me lembro, aquele seu namorado do qual eu nunca gostei...
— Pois é, eu me casei com ele e tive uma filha que resolvi chamar de Patrícia em homenagem a minha mãe, que se comoveu e perdoou a nossa união antes não abençoada. Se você é Lúcia, se você realmente é minha mãe, deve se lembrar desse dia.
— Não, não me lembro.
— Por anos, nossa família adotou o costume de tatuar no antebraço o nome de uma mulher da família a quem nós admirássemos, e eu escolhi tatuar o nome de minha única filha e ao mesmo tempo, o segundo nome de minha mãe.
Lúcia ia ficando cada vez mais boquiaberta com toda aquela situação.
— Você, minha filha, resolveu tatuar no seu antebraço o nome da mulher que você sempre admirou, mas que não teve a oportunidade de conhecer direito, pois ela morreu quando você tinha apenas dois anos. Você é e não é ao mesmo tempo Lúcia, mas não a que me deu a luz, não a que lhe deu essa fita que está pendurada em sua cama para amarrar os cabelos. Você é Patrícia, minha filha, neta de Lúcia, minha mãe. Ela escreveu esse livro pra você, contando sua vida, e você sempre o lê. A ligação entre vocês duas enquanto ela esteve viva era muito forte e nós não podíamos entender. Nunca consegui explicar a sua descrição que era exatamente a que minha mãe, Lúcia, usava para falar de sua personagem. Esse foi mais um dos motivos de termos adotado seu nome. Gostamos de acreditar que minha mãe, que sempre teve um lado meio diferente, pôde prever como você era.
Nesse momento, Lúcia (ou melhor, Patrícia) sentia-se como duas mulheres ao mesmo tempo. Seria ela um elo entre o passado e o presente através da mente de sua avó? Seriam Lúcia e Patrícia a mesma pessoa com corpos diferentes.
Angélica então resolve continuar:
— Você sempre disse que havia lido em um livro que almas gêmeas eram na verdade a mesma alma que em determinado momento eram divididas em várias outras almas e espalhados pelo mundo em corpos diferentes que tenderiam a se encontrar. Acho que você e minha mãe eram almas gêmeas.
— Mas...
— Desculpe Patrícia, mas há mais uma coisa que você precisa saber. Todos os dias, minha filha, você acorda achando que é a minha mãe e eu tenho que convencer você a ser Patrícia. Você nunca se lembra, mas é assim. Por isso que o álbum de fotografias está sempre aqui do meu lado, para lhe provar todos os dias que vocês podem ser almas gêmeas, mas são pessoas diferentes.
E então, a agora conformada Patrícia levanta-se e vai até a janela, puxa a cortina bordada e observa pelo vidro que a cidade lá fora já não existia mais. Os carros e as pessoas haviam dado lugar a árvores e campos verdes e ela sentiu-se em paz. Sentiu-se tão confortável que podia dizer que era duas e que pra sempre seria feliz com aquela repetição diária. Ela sempre amou a sua avó que nunca pode conhecer direito ou que sempre conheceu, antes mesmo de nascer.
O sol iluminava o rosto jovem que deveria estar velho, se ela realmente fosse quem achava ser no princípio. Ela sentia o sol e sentia o chão frio sob seus pés e imaginava o tamanho do universo e também a quantidade de vezes em que sua alma havia se dividido desde sua criação.
Fechou os olhos e imaginou as estrelas que brilhariam à noite e pôde perceber que esta noite não era a de hoje e nem a de amanhã. Percebeu pelos diamantes que piscavam no firmamento que haviam se passado muitas centenas de anos e que ela estava ali, como Lúcia, como Patrícia, como Sofia, como Angelina, como Júlia...

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