1/10/2007

II – A comédia

II – A comédia

Madrugada. Novamente ele acorda e observa o céu pela janela aberta que fica atrás da cabeceira de sua cama. A lua parecia tão bonita aquela hora que ele se recusava a olhar. De repente o telefone toca, o único ruído no meio de um mar de eterno silêncio. Ele reluta em levantar, está terrivelmente cansado e não consegue dormir há dias. Depois de chamadas ininterruptas o telefone para de tocar e retoma, depois de alguns segundos, o seu ato incômodo de berrar na madrugada. Ele abre os olhos de maneira enfurecida. Não sabe porque, mas começa a pensar no dia em que a mãe de seu amigo resolveu corrigir um erro bobo de português que ele havia cometido em um de seus poemas. Ele lembra de ter se sentido humilhado. Para não perder a postura deu um sorriso amarelo e disse que as coisas são assim mesmo, ele não era bom em português mas era ótimo em escrever. Mas ninguém havia dito que ele era um ótimo escritor. Então de onde ele havia retirado essa informação? Estranho, ele não chegou a nenhuma conclusão quando novamente pensou em outra derrota enquanto o telefone não parava de tocar ridiculamente àquela hora da madrugada.

Ele lembrou-se daquele dia em que chegou no trabalho e um funcionário mais antigo, mas que não ocupava uma posição hierárquica mais alta que ele o olhou com um ar de superioridade e de desprezo e disse:

— Você não sente vergonha de ser dessa forma? Não sei, mas se veste e se comporta de maneiras não muito normais. Veja só a sua sala, está suja e desarrumada e você não faz nada pra mudar isso! Você esqueceu qual é a sua função aqui dentro? Não sei se você já notou, mas todos já foram reclamar de você para o chefe, todos falam mal de você pelas costas, comentam a sua má vontade e seu modo ridículo de só dar importância a suas próprias coisas. Coloque-se no seu lugar. Vista-se direito e tenha mais boa vontade. Não vê que o que faz é nada mais que merda nenhuma?

Ele já havia se esquecido que as pessoas podiam interferir tanto em sua vida. Lembrou-se que seus olhos se encheram d’água (motivo que foi usado pelo seu “amigo” semanas mais tarde para mais um pacote de humilhações). Seu estômago doía enquanto ouvia aquelas palavras. Até aquele dia ele se considerava uma pessoa de boa vontade e não media esforços para ajudar qualquer um, até fora do seu horário de trabalho e com coisas que não lhe diziam respeito desde que essas coisas não atrapalhassem o seu modo de viver a vida. Até aquele dia ele se julgava um bom funcionário, mas ninguém havia dito isso a ele. Essa era uma conclusão solitária e silenciosa.

Finalmente o telefone havia parado de tocar, acho que haviam se cansado de tentar. E se fosse algo importante? Ele não queria saber. Talvez fosse mais uma das pessoas com quem era obrigado a conviver tentando dizer que ele era uma pessoa miserável que não faz nada direito.

Finalmente notou que uma pequena lágrima descia por sua face, uma lágrima fria que parecia estar tentando se desprender por horas das pálpebras entreabertas. Ela escorreu diminuindo gradativamente de tamanho e parou no queixo, de onde resolveu pingar até o travesseiro. Simplesmente ele a deixou ir embora para o perfeito mundo dos travesseiros sem nem dizer adeus. Todos pareciam querer ir para longe e ele nem era avisado. Seria isso dramático demais? –pensou ele – Talvez sim... sempre fui o drama em pessoa.

Observou uma nuvem que agora passava lentamente sobre a imagem da lua. Esqueceu por milésimos de segundo toda a angústia que estava sentindo. Talvez algumas pessoas nascem para serem assim, simplesmente sacos de pancada da vida e o que mais amava estava morrendo: seus sonhos. Quem mais lhe confortava estava partindo: sua família. O sentido de sua vida parecia extremamente distorcido. Ele pensou pela milésima vez em suicídio, mas descartou a idéia simplesmente por estar cansado demais para levantar da cama.


CONTINUAÇÃO____________________________________________________

Então ele ouviu novamente o que achou que não teria que ouvir mais naquela noite: o toque do telefone, alto, frio e impiedoso. Algo tão irritante que ele, mesmo mergulhado em sua profunda tristeza e auto-piedade resolveu levantar-se finalmente para atender. Estranhou profundamente o fato de não conseguir mexer os dedos dos pés como costumava fazer segundos antes de se levantar. E esse sentimento estranho foi aumentando de maneira rápida quando percebeu que suas pernas e braços também estavam imóveis. Não conseguia esbugalhar os olhos quando começou a sentir o pânico e começou a se perguntar, com os gritos do telefone como trilha sonora, o que havia acontecido.

Meu Deus, o que havia acontecido com ele? Tudo bem que as doenças sempre estiveram presente em sua vida, mas não daquela forma. O dia estava começando a chegar e o telefone não parava de tocar incessantemente. Ele queria gritar, mas sua boca estava muda, nada acontecia quando tentava inflar os pulmões.

Ouviu batidas fortes em sua porta e pessoas gritando o seu nome lhe ordenando que abrisse. Ele o teria feito se conseguisse, mas não estava em condições. Morava em um prédio, o que impossibilitava que as pessoas o vissem ali imobilizado pela janela.

Queria chamar sua mãe, mas ela não morava mais em sua cidade. Queria gritar por sua namorada que sempre estivera do seu lado, mas ela resolvera ir para longe também. Estava realmente sozinho em sua cama de casal, acompanhado apenas de cartelas e vidros de remédio abertos e espalhados ao seu lado. Passara a noite em uma companhia diferente, que dormira de seu lado e dentro dele.

Agora estava se lembrando, a vida parecia uma comédia, engraçada até demais depois de alguns copos de vinho doce. Tão engraçada que ele resolveu contar uma piada: tomou todos os comprimidos que conseguiu e deitou-se olhando a lua pela janela. Ele havia tentado se livrar de seu fardo, o título que costumava dar a sua vida.

Agora ele entendia o porque de sua imobilidade. Simplesmente ele havia matado seu corpo. Estava morto na cama.

Do outro lado do telefone que tocava sem parar estava um velho amigo de infância que esteve preocupado com os últimos comentários dele e resolvera ligar pra saber se estava tudo bem e se ele queria uma companhia. Afinal, alguém se importava com ele. Tomado por uma profunda preocupação, seu amigo, que morava do outro lado da cidade, acordou todos os conhecidos que moravam mais próximo e pediu para que fossem investigar o que estava acontecendo. Eram eles que batiam a porta.

Finalmente, eles entraram. Ele viu tudo, deitado e morto de onde estava. Viu seu amigo chegar e chorar com as mãos no rosto parecendo desesperado. Via sua mãe chorar até quase desmaiar dizendo que não deveria ter abandonado o seu único filho.Culpando-se por algo que não tinha culpa. Viu sua namorada, respirando aliviada por ter saído daquela relação com um “louco”, pois, de acordo com ela, todos aqueles que acabam com a própria vida são loucos. Por fim, viu a si mesmo sentado em um bar com um copo de cerveja na mão e rindo, rindo sem parar com seus amigos, de coisas que não tinham a mínima graça. Viu-se correndo de bicicleta na chuva fria do inverno enquanto voltava de sua faculdade, tentando se molhar o mínimo possível, mas sem se tocar que não havia uma única parte de seu corpo que estava cheia da água que vinha do céu. Viu-se escrevendo um texto enquanto ouvia Damien Rice, algo sobre a sua vida, algo cheio de erros de português e de concordância, mas que era cheio de alma e tinha realmente um pedaço dele mesmo. Viu as crianças que corriam na rua e riam dele sem mesmo saber porque enquanto ele ria de volta maravilhado com a graça dessas pequenas criaturas. E por fim, viu-se chorando de alegria, quando finalmente percebeu que a vida era cheia de altos e baixos, realmente uma comédia estrelada por nós mesmos e quem escreve o fim de cada uma de nossas vidas somos nós.

Ele foi lembrado por décadas quando seus textos foram encontrados, e por séculos quando estes se transformaram em livros, e pra sempre, quando finalmente conseguiu o que queria: simplesmente viver em sua arte.

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