2/21/2007

Amargo

Caroline contemplava os animais em suas jaulas pela tv e não sabia ainda direito se era correto ou não mantê-los ali, presos, longe do seu habitat. Estavam a salvo de uma possível extinção mas estariam livres da vida também.
Levantou-se, andou um pouco pela sala do seu apartamento e começou a olhar pela janela do 14º andar. Era domingo e ela realmente não sabia o que fazer com que estava dentro dela, uma escuridão completa misturada a claridade excesiva da cocaína, a vontade não lúcida de existir, além do normal.
Lembrou-se então dos seus pais que nunca saíram da cidade pequena em que moravam. Nunca se arriscavam, nunca pensavam em viver uma vida além dos seus próprios horizontes. Caroline se perguntava se eles haviam sido felizes enquanto estavam morando naquela casa feita de tijolos velhos e barro. Mas ela não conseguia encontrar sorrisos autenticos em sua memória. Sua mãe estava sempre com um riso amarelo estampado nos lábios e seu pai só sabia reclamar em voz baixa, com a cabeça entre as mãos e olhando o chão.
Ela nunca se sentira tão livre quanto agora, ninguém nunca descobriria o que ela havia feito e ela estaria com tudo o que poderia precisar para ter uma vida perfeita. Mas ela não sabia o que fazer com tudo aquilo que havia dentro dela. Ela queria poder voar e queria poder estar em vários lugares ao mesmo tempo, ser onipresente, ser grandiosa. A cocaína aumentava o seu angulo de visão e isso fazia com que ela se diferenciasse dos seus tão pequeninos e escondidos pais.
As árvores do outro quarteirão estavam com uma folhagem tão bonita agora, e ela nunca havia percebido isso. Se lembrou das folhagens das árvores que estavam plantadas ao redor de sua antiga casa e fechou os olhos para poder ver melhor, mas agora as coisas nunca mais poderiam ser as mesmas. Faziam já 2 anos que ela estava em outro universo, em outro mundo completamente diferente. Na urbana e agitada vida da cidade.
Caroline andou até a cozinha e queria um copo de café. Estava com uma vontade absurda de fazer sexo e não sabia como se satisfazer. Porque tudo em sua vida agora parecia ser tão possível de ser realizado e tão complexo ao mesmo tempo? Ela se lembrou de uma frase que lera em um anúncio antes de sair da casa de seus pais: "seus sonhos estão nas núvens? Pois estão no lugar certo, comece agora a construir os alicerces".
Se serviu de uma xícara de café muito quente e queria beber pequenos goles sem esfriar, para que pudesse desafiar seus próprios limites. Caroline se queimava e se entusiasmava, colocando a mão por baixo da saia e encontrando-se molhada pela liberdade. E sem perceber, começou a lentamente a se masturbar. A vontade de sentir o que era o máximo era muito grande, era infinita, ela não sabia o que fazer com tanta vontade, com tanta grandeza dentro dela querendo explodir. Entornava aos poucos pequenas quantidades de café quente em seus seios e sentia dor, gritava, e continuava a se masturbar.
Lembrou-se do dia em que ela resolvera fazer tudo o que tinha em mente. Sabia que seus pais estavam guardando dinheiro para que ela pudese ir para uma faculdade particular e essa quantia já devia estar bem generosa. Seduziu então o jovem Jobir, de 17 anos que queria acima de tudo provar o gosto de Carolina. Então eles foram pra casa de barro e enquanto os pais dela estavam ainda do lado de fora eles começaram seu ato de sexo no lugar mais acessível da casa. Ela gritava de prazer e dor por estar perdendo todas as virgindades possíveis. Jobir estava muito concentrado quando recebeu o golpe na nuca que o deixou caído no chão. O pai de Carolina os havia pego em flagrante e gritava sem parar. Jobir levantou-se do chão com as calças abertas e, enquanto chorava de tanta raiva, esmagou o crânio do pai de Carolina com uma cadeira. Ela sorria levemente por seu plano estar dando certo.
Todas essas lembranças faziam com que ela chegasse ao quase orgasmo enquanto se deliciava em sua cozinha e em seu café.

__________continuação
Ela continuou a se lembrar como se tivesse sido ontem, quando Jobir se desesperou e esmagou a garganta da mãe de Carolina, enquanto ela tentava proteger o marido. Ele, então, olhou para Carolina com um ar de perdão e viu que ela segurava em suas mãos uma arma. Planejadamente, atirou na cara de Jobir e por alguns instantes contemplou a mistura dos sangues na sala da casa que tanto odiava.
Foi vista como vítima. Pegou todo o dinheiro e foi para a cidade. Alugou um apartamento de onde poderia ver o mar e ver que era livre.
Agora ela estava ali, na cozinha, queimada e ainda não havia gozado. Parou de repente, abriu os olhos e se contemplou em um espelho. Caminhou lentamente até a sala e viu o pó branco sobre o vidro da mesa. Cheirou. Sentiu. Lembrou.
Agora ela se via abraçada com o pai, enquanto ele a salvava de uma correnteza, quando ela queria na verdade pegar um briquedo que caíra no rio. Viu-se dormindo nos braços da mãe enquanto estava com febre e não estava com forças o bastante para se levantar. Lembrou-se de que ela não odiava seus pais que tanto a amavam. Olhou para dentro de seus próprios olhos e viu de quem era o ódio que ela sentia. Um auto-ódio por nunca haver se encontrado de verdade, e agora, ali estava ela, amedrontada por ver quem ela era. Caminhou lentamente até a varanda. Abriu as portas e contemplou o mar. Ela queria voar até lá. Ela queria ser parte do universo, mas isso parecia ser impossível. Ela queria poder acordar um único dia de sua vida e se sentir completa. Mas não conseguia, havia sempre algo faltando. Subiu então no para-peito. Inclinou-se para a frente, olhou o mar, queria voar até lá. Se lançou em uma queda livre, enquanto chorava por não ser, o que só deixou de ser, quando encontrou o chão.

2/11/2007



Seriam os mesmos sonhos? Os mesmos direitos à vida? Seriam os mesmos ideais, a mesma perspectiva de futuro? Todos se esquecem que estamos sob o mesmo teto e que não existem paredes nessa casa.

O homem como lobo do homem e como lobo do mundo.

Interrompendo a andamento normal, onde só posto poemas e contos, resolvi escrever algumas coisas que vem martelando aqui na minha cabeça. Não que eu ache que na verdade há pessoas lendo esse material, pois, se existem, essas são raras ou indicadas diretamente por mim.
Mas, vamos ao assunto:
Acredito que muitos de nós já ouvimos a expressão "o homem é o lobo do homem". Ou seja, o homem contém dentro de si mesmo a sua própria destruição, e se pararmos para complementar a expressão, o homem contém também a destruição de muito mais do que somente ele próprio.
Seria o final da nossa espécie um bem para o mundo e para o universo? Será que assim nós estaríamos exterminando o grande vírus que tem a potencialidade de terminar com a vida na Terra?
Eu percebi hoje como podemos ser egoístas, sem pensar na dor de quem está do nosso lado mas nos indignando com coisas que nem chegam a doer que acontecem conosco. E percebi como nós podemos ser frios, a ponto de torturar e matar outros seres que não tem a capacidade de se defender.
A honra cometeu suicídio. Todos olham esfomeados pro próprio umbigo!
Acabamos liberando em pouco mais de uma centena de anos, carbono que havia se armazenado por milhões de anos no solo. Desencadeamos um processo crônico de suicídio. O efeito estufa, o uso indiscriminado da água potável, o desrespeito com a vida animal e vegetal, com seus habitats. Jogamos lixo pela janela do carro como se fosse a coisa mais normal do mundo. E esse lixo cai sobre um solo feito de asfalto e cimento, que esmaga e sufoca onde realmente deveriamos estar pisando.
O dinheiro é tão importante que não há outro motivo para se viver. Os sonhos são abafados por ele, a vida de outras pessoas perdem o sentido por ele, há povos se dizimando, religiões se confrontando, realidades virtuais sendo criadas, países grandes engolindo países pequenos financeiramente falando!
O ser humano inventou deus e o guardou em uma gaveta e agora o usa apenas como uma espécie de comprimido, capaz de fazer com que ele deite sua cabeça sobre um travesseiro e consiga pegar no sono sem um pingo de remorso. Há ainda aqueles que já desenvolveram tamanha imunidade à culpa que nem precisam mais usar esse artifício.
Até os idiotas mais acéfalos conseguem ver a merda já feita: Bush está com medo, nem todo o seu dinheiro pode manter o seu queixo erguido agora!
Então e me pergunto, será que todos param pra imaginar o mundo que criamos? Cheio de dor, de morte e de corrupção. Um mundo que fede só de se imaginar. Será que teremos um futuro? Quantos anos, vivendo assim, dando de ombros, nós ainda temos?
Enquanto cada ridícula cabeça humana não começar a entender que ela pode mudar alguma coisa agindo direito, conectando-se com todo o plante não pela internet, mas pela alma, nós estaremos fadados a uma rápida e dolorosa extinção.

Pensar é o que há de mais importante agora!

2/10/2007

XII– De volta a vida

Dimas se vestia em seu quarto sem janelas na parte de cima de sua casa. Não era possível saber se era dia ou noite sem se olhar em um relógio. A luz que vinha do banheiro era o bastante para que ele pudesse concluir a sua tarefa de estar de acordo com o trabalho que a sua família fazia há décadas. No andar de baixo, seus irmãos e sua mãe trabalhavam.
Ele se preparava para o próximo turno.
—Dimas - disse Bento, o irmão mais novo de Dimas, ofegante por ter subido as escadas correndo para dizer algo que parecia inadiável - mamãe disse que você não precisa pegar o próximo turno. Ela disse que não está com sono, vai continuar trabalhando. Você pode voltar a dormir.
Dimas olhou para seu irmão e percebeu um ar estranho em sua face. Alguma coisa parecia ter acontecido.
—O que aconteceu Bento, parece preocupado. - disse Dimas, sem parar de se vestir e com uma expressão de profundo desânimo que demonstrava que ele já havia perdido as forças para lutar em alguma batalha e já estava entregue.
—Não Dimas, não foi nada - disse Bento ensaiando um sorriso que obviamente era falso - é que a mamãe está com pena de você, tem estado muito cansado por causa da faculdade.
—Bento, estou bem, não há nada de mal em fazer o meu trabalho. Já estou acostumado em fazer isso. Quando você ainda era uma criança eu já ajudava nossos pais, antes de papai ir embora.
—Não cara, você sabe como a mamãe é impaciente, ela disse para você não descer. Volte a dormir!
Dimas parou e olhou para o lado. O rosto de Bento na penumbra parecia altamente desesperado. Ele agora tinha certeza que algo havia acontecido, e não era algo bom. Mas como era comum, Dimas parou de se vestir e resolveu se jogar do jeito em que estava na cama. Então, disse para Bento com um ar irônico:
—Ótimo Bento, você acabou de sugar as minhas últimas forças. Vou ficar aqui e descansar. Diga a mamãe que quando ela não agüentar mais a ficar de olhos abertos que ela pode me chamar. Afinal de contas, dar os pêsames a noite toda também cansa muito.
Bento olhou para o irmão e disse:
—Tudo bem Dimas, durma um pouco, aproveite o dia, você não tem aulas hoje. São quatro horas da tarde, durma até a meia noite.
Obviamente Dimas não estava com tanto sono assim. Ele não iria dormir até a meia noite para depois engatar uma segunda marcha no seu sono até de manhã. Há muito tempo, nem nos feriados e nem nas férias ele havia tido tanto para descansar. Sabia que algum problema havia acontecido e sua mãe obviamente queria mantê-lo afastado. Devia ser algo que o afetasse. Ou não, devia ser simplesmente algo que o tiraria do sério e faria com que se metesse em mais uma briga com algum cliente que se recusava a pagar o valor cobrado. Ele sempre defendia sua mãe, nem que o cliente fosse duas vezes maior que ele.
Não imaginou muito, lembrou que as notícias ruins chegam rápido e ficou apenas aguardando até que elas chegassem em seus ouvidos.
A família de Dimas já estava no ramo funerário há mais de 50 anos. Eram os mais conservadores e também agiam dentro da religião católica, seguindo a risca todas as determinações que o vaticano estabelecia. Dimas, como seus irmãos, trabalhava vendendo os caixões, flores e na organização de velórios que aconteciam na própria capela barroca que eles haviam herdado muitas gerações atrás. Por isso, muitos corpos eram velados por lá.
Ele já estava tão condicionado a manter a expressão de torturado que mantinha por todos os lugares que visitava. Na faculdade, era conhecido por suas expressões infelizes e por suas palavras ditas em um tom baixo e suave. Ele se mostrava fúnebre em tempo integral e isso estava em seu sangue agindo como todos da sua família antes dele.
Deitado em sua cama, ele começou a se lembrar de fatos que haviam acontecido recentemente. Estranhamente ele não conseguia se lembrar de como se sentia antes de ter conhecido a menina que havia iluminado seus dias. Amélia, branca e linda como um raio de sol no cinza e preto de seu dia chuvoso. Ela passou no corredor da faculdade e ele estava lá parado diante da porta quando isso aconteceu. Não se lembrava de mais nada a sua volta.
Dimas descobriu que Amélia morava em uma antiga casa de esquina que tinha uma estória bem esquisita. Ela era velha e todos os que moravam lá também eram. Menos Amélia. Sua face era lisa como uma nuvem e seus olhos pareciam penetrar na alma de quem se aventurasse a encara-los.
Dimas se descobriu nesse dia profundamente apaixonado por ela. Ele a encontrou algumas vezes no caminho de casa e em um dia em que as aulas acabaram tarde ele teve o prazer de ver que ela estava sem companhia para ir embora.
Deitado em sua cama, Dimas se lembrava de palavra por palavra:
—Olá - disse ele com um receio enorme de ser ignorado e imaginando que ela nunca teria notado a sua presença na faculdade antes.
—Oi cara - disse Amélia - você é o Dimas, não é?
Parecia que os pés de Dimas haviam parado de sentir o chão. Ele não conseguiu evitar o sorriso que lhe apareceu espontaneamente na face. Como aquela garota que parecia ser de uma outra realidade havia lembrado do seu nome? Será que ela sentia o mesmo que e Dimas? Ele achou melhor pensar que não, deveria ser só uma coincidência. Com certeza ela deve ter ouvido seu nome em algum lugar e se lembrou, ainda mais por ser um nome pouco comum.
—Alou! Você está aí? – perguntou Amélia para Dimas que agora exibia um rosto abobalhado onde sustentava um riso aberto e contente. Dizendo isso, ela o tirou daquela espécie de transe em que ele havia entrado.
—Oi, sim, sim. Eu sou o Dimas, e você é Amélia.
—Vejo que não precisamos ser apresentados por ninguém. – disse isso estendendo a mão para um aperto.
Dimas apertou-lhe a mão e teve o prazer de sentir a macia pele de seus dedos encostando nos seus. Aquilo pra ele já valia o dia.
—Quer uma companhia para casa? – perguntou finalmente Dimas.
—Mas você não mora para o outro lado?
—Sim, mas hoje estou indo para o lado da sua casa.
—Ah, você sabe onde moro? Como?
Dimas então se corou de vergonha. Ele não sabia o que responder para ela. Desconversou. Disse que era um prazer acompanhar uma senhorita até a sua casa. Ela achou estranho o tom, mas gostou dele.
Mas Dimas não sabia muita coisa de Amélia. Com a sua crença extremamente católica, ele se sentiu em meio a uma batalha quando veio a saber na conversa que tiveram naquela noite que ela estudava uma religião antiga, pagã e condenada pelo catolicismo. Ela chamava de “felicidade em frascos de vento” tudo aquilo que ela dizia ser a sua inspiração de viver. Olhava para Dimas com um olhar tão especial que ele não conseguia mais parar de lembrar dos olhos verdes que ela tinha.
Dimas se manteve quieto por muito tempo sobre a garota que apelidou de “A Menina do Dia”, porque, ele dizia, foi ela quem deu a ele o dia mais feliz de sua vida, o dia em que eles conversaram pela primeira vez e ele se sentiu mais uma pessoa no mundo, não menos que isso.
De volta a seu quarto, em uma pequena pausa em seus sonhos que eram repetidos diariamente como mantras sagrados, Dimas olha seu relógio e vê que já haviam se passado quatro horas. Ele acha que dormiu, mas não, estava preso em pensamentos que desta vez estavam sendo lembrados com uma intensidade muito maior do que das outras vezes.
Durante várias outras caminhadas que Dimas acompanhou Amélia, mesmo tendo que andar tudo de volta até a sua casa, eles conversaram sobre vários assuntos, inclusive um dia especial em que ela deveria encontrar o segredo de sua vida. Um dia aguardado há muito tempo, por cada um que espera saber mais sobre si mesmo.
Eles nunca se beijaram e sua relação não passou e uma profunda amizade. A Menina do Dia o chamava depois das aulas para irem juntos caminhando e ambos conheciam mais dos mundos um do outro. Ela dizia muitas vezes que nada o prendia ali, que estava livre para fazer o que quisesse em toda a sua vida. Dizia isso porque Dimas parecia estar sempre preso no mesmo lugar. Ele não gostava de viajar e tinha medo de sair de perto de onde ele se sentia mais seguro, a sua casa. Em certa ocasião ela disse para ir para a Islândia. Ele disse que gostaria e eles riram daquele momento onde parecia que ele finalmente havia resolvido mais esse seu problema.
E ele entendeu por ela que deve-se aprender algo de bom no que é ruim, deve-se retirar da tragédia o significado da vida. Deve-se tirar da doença a força para se reerguer. Deve-se tirar da solidão o consolo de seu próprio coração. A Menina do Dia era assim, uma pessoa extremamente iluminada.
Bento um dia encontrou uma foto que eles tiraram juntos e perguntou para Dimas se ele havia finalmente encontrado uma namorada com um tom meio irônico. Ele disse que não, mas que gostaria que ela fosse a sua namorada.
No dia em que eles se despediram ele ficou sabendo de algo diferente. Ele encontraria muito de si mesmo, em breve.
Abriu os olhos. Um susto que foi acalmado com o olhar no relógio. Eram dez horas da noite. Ele havia descansado bastante. Se lembrou dela e como se fosse um golpe repentino o entendimento lhe bateu. Não podia ser!
As notícias ruins sempre chegam rápido. Ele já sabia da má notícia antes mesmo de pensar em tudo o que havia pensado novamente. Colocou, ainda na penumbra, os sapatos nos pés sem meias. Vestiu o casaco e resolveu que não se importava mais com o estado do seu cabelo, ele iria descer assim mesmo. Abriu a porta que se chocou contra a parede fazendo um estrondoso ruído.
Bento estava sentado no último degrau da escada. Dimas desceu sem perceber os degraus, tamanha era a sua pressa. Rezava milhares de vezes para Deus, pedindo em milésimos de segundo que não fosse verdade.
—O que foi Dimas – perguntou Bento de forma grave.
—Saia da minha frente irmão.
—Não Dimas, fica aqui cara.
Uma lágrima pelo canto do olho escorreu. O sinal de toda a compreensão. Não adiantava segurar, ele iria saber cedo ou tarde. Bento permitiu que ele passasse.
O desespero se transformou em uma espécie de silêncio em sua alma, nenhum barulho era ouvido por Dimas. Ele caminhou até a sala do confessionário, abriu a porta que dava para o altar da igreja passou por ela sentindo um infinito peso cair sobre seus ombros, o mesmo peso que deveria ser erguido a qualquer custo, pois dele ele retiraria a força para agüentar outras tragédias como aquela.
Olhou para o centro da igreja e lá ele encontrou novamente os olhos que haviam marcado a sua alma, só que agora eles estavam fechados. Amélia estava morta, nada mais valia a pena. Dimas perdeu o equilíbrio, Bento vinha logo atrás e o segurou.
—Calma irmão – disse ele – estou aqui pra ajudar.
Dimas andou até o corpo. Ele olhou pra ela lembrou-se de tudo mais uma vez, como um mantra. Ele então entendeu que suas almas estavam ligadas para sempre.
Branco o disse que ela havia sido morta, no dia escolhido, por tentar salvar um animal. Dimas sorriu. Ele a encontraria com certeza em algum lugar em algum tempo que ninguém poderia saber, pois as almas gêmeas estão eternamente interligadas.
E sem saber, o dia escolhido fez o que deveria fazer. Uniu os fragmentos de uma única alma que estavam espalhados. Amélia, Lucia (ou Lucy), Noah (ou André), Branco, Davi, Amyr (ou Zamaré), Rudi e Mina, Patrícia e Beatriz e muitos outros fragmentos de outras almas que estavam espalhados também. Porque todos somos um e respiramos juntamente com o planeta em que vivemos. As árvores, o céu, os rios e mares são o mesmo ser vivo que cada um de nós. O sal e a água do mar, a força que as plantas retiram do chão, a luz que chega até aqui e o ar que venta nas asas de uma borboleta mas que se tornam furacão do outro lado mundo, tudo isso está dentro de cada um de nós e nós apenas resolvemos nos esquecer disso.
Durante semanas Dimas não conseguiu comer direito e nem dormir. Mas quando finalmente ele viu o que isso tudo significava ele resolveu se libertar. Resolveu carregar o peso que havia adquirido mas de cabeça erguida. Não faria como João que lamentava a morte da esposa diariamente se deixando ser vencido pelo peso do acontecido.
Dimas saiu pela porta da frente em uma bela manhã e respirou fundo o ar que o rodeava. Olhou pra trás e viu a sua mãe com a cara de sempre, a de que dá os pêsames e disse:
—Mãe, estou indo viver, cuide de tudo enquanto estou fora.
E saiu, viajou para longe e descobriu que não tinha raízes, estava em casa onde quer que fosse. Descobriu que o peso que tinha que levar ficava mais leve a cada dia e retirou de todo o mal que encontrava na sua vida a parcela de bem.
E enquanto a aventura de viver durava, no som do walkman de Dimas, uma música do Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band era a trilha sonora de suas descobertas. Exatamente a terceira faixa do álbum...

2/09/2007

LUA NEGRA

Quando as chagas tristes e cortantes
Invadirem por final meu equilíbrio
Pensarei por mais um instante
Antes de por fim no meu delírio

Quando a dor for seu amor
E a alegria envelhecida passar por você
O passado te trará rancor
Eu sei, eu verei você sofrer

Mas as lágrimas parecem não bastar
Parecem não suprir a minha dor
E o futuro se enbaça ao tardar

Mas eu não vivo por viver
Preciso muito mais do seu amor
Pra poder dizer que vivo por você*

*encontrei uma folha de caderno velha e amassada ao arrumar um armário. Nela, estava esse poema que escrevi há mais ou menos 10 anos. Eu me lembro bem pra quem ele foi escrito...

III – A estrada e o sol

Em um caminho que o levava rapidamente para casa e que também continha as mais bonitas árvores de sua cidade, André resolveu entrar com o seu carro para voltar de mais um dia normal onde nada demais acontecera. As árvores continuavam no mesmo lugar de sempre e o sol se pondo, da mesma maneira todos os dias. Era uma das poucas coisas que não deixava a sua vida repetitiva mais triste.

Ele costumava pensar que para ele existiam apenas dois estados de espírito:

  1. Quando haviam problemas de mais para preocupar-se e que tiravam sua cabeça da normalidade, não restando muito tempo para si mesmo;
  2. Quando os problemas não existiam e ele os criava.

Fechou os olhos por dois segundos e sentiu o vento que entrava pela janela de seu carro e começou a agradecer em silêncio a Deus. Agradeceu por tudo o que tinha conquistado até então; pela saúde de todos os seus amigos e de todos os parentes mais importantes para ele. Aproveitou para implorar uma nova postura para si próprio, pois ele se achava ridículo por não estar feliz.

Resolveu fechar de novo os olhos, só que agora estava mais difícil de reabri-los, pois o vento acariciava seu rosto, seus pés pareciam cada vez mais confortáveis. Acelerou de olhos fechados e esperou que a brisa aumentasse. Ele ouviu uma música dentro dele mesmo, algo que não sabia que existia ali e sentiu-se livre. Finalmente André abriu os braços e contemplou da maneira mais aprofundada possível o melhor sentimento que se lembrava de ter sentido.

A rua foi chegando ao final e o sol estava ligeiramente mais baixo quando ele chegou a uma avenida de mão dupla. Os olhos permaneceram fechados, ele não tinha vontade de enxergar agora, só queria o aconchegante escuro de suas pálpebras, tão aconchegante e tão profundo. Tão silencioso.

A linha de ônibus que levava pessoas cansadas de volta para suas casas estava no horário certo. Acabara de sair do ponto onde haviam subido mais oito passageiros aproximadamente. Então, André veio, leve como uma pena e esmagou-se fortemente contra a lateral do ônibus que estava completamente lotado. Voou pelo pára-brisa quebrado e encontrou o frio retorcido da lataria. Caiu sobre o que restou do seu carro.

Dizem que o cérebro de uma pessoa que morre fica cerca de quatro minutos ainda vivo. Então, foi isso que André pensou, na possibilidade de sua morte. Na possibilidade de que essa sensação de liberdade nunca mais terminasse.

Finalmente, depois de algum tempo seus olhos se abriram. Sua pele estava um pouco mais escura, como se ele estivesse pegando sol todo o tempo em que esteve supostamente desacordado. Ele lembrava-se apenas que havia se chocado fortemente contra um ônibus que não tinha nenhuma culpa de estar no lugar certo, na hora em que deveria estar, mas que seria muito bom se não estivesse.

“Tomara que ninguém além de mim tenha se ferido, eu realmente fui muito imprudente e acabei esquecendo tudo a minha volta”.

Esse era o pensamento mais gritante em sua mente naquele momento. Mas ele finalmente havia parado de pensar quando encarou a cor de suas mãos e a aspereza de seus dedos calejados. André não estava em uma cama de hospital, nem em sua própria cama, ele estava deitado do lado de uma mulher loira que dormia profundamente. Os cabelos dela cheiravam muito bem e o sol entrava estranhamente pela janela, parecendo mais um sol de entardecer do que um sol matutino. Ele se levantou e continuou a se surpreender quando notou que seus cabelos estavam de um tamanho que ele não costumava usar, estavam completamente diferentes e quando finalmente olhou-se em uma superfície espelhada, notou que não somente os cabelos estavam diferentes e levemente grisalhos, como também toda a sua face havia sofrido uma grandiosa alteração no período em que ele achou estar em coma.

Ele pensou nas coisas mais absurdas possíveis, inclusive na possibilidade de estar sonhando, ou, de que a vida que ele achava ser verdadeira fosse na verdade uma alucinação. Caminhou completamente absorto para outro cômodo que não parecia ser uma casa, e sim, um trailer parado no meio do nada, onde, com outros trailers, formava um estranho condomínio aberto em meio a uma infinidade de poeira e calor. Procurou água – estava imensamente desidratado – e encontrou um pouco no frigobar. Sentou-se em uma cadeira que estava diante de uma pequeníssima mesa e começou a pensar com os olhos fixos em uma parede que não tinha nada, nem um quadro e nem uma pintura feita. André notou que estava mais alto e mais robusto e que andava pela “casa” sem nenhum tipo de roupa. Isso parecia muito estranho, pois se acordou ao lado de uma mulher e estava sem roupa, algo de interessante deve ter acontecido na noite anterior. Mas, surpreendentemente ele não se lembrava de nada além da forte batida contra a lata fria do ônibus e os seus pensamentos sobre a morte.

Uma idéia então lhe caiu como um raio na mente: deveria consultar um relógio e um calendário. Precisava saber quanto tempo esteve fora. Procurou pela casa e foi somente no braço da mulher ainda adormecida que ele encontrou um relógio que marcava além das horas, a data exata. Era o mesmo dia, quase na mesma hora. Era o mesmo ano, o mesmo século! O que estava acontecendo?

Os olhos da mulher se abriram um pouco, o bastante para enxergar o rosto de André e perceber o seu sentimento desconcertante. Ela esboçou um leve sorriso e André notou que aquela atitude lhe fazia um bem tão grande que ele conseguiu até sentir prazer ao ver o sorriso da mulher. Ela parecia ter por volta de trinta anos e seus olhos eram lindamente verdes, um contraste gritante com a paisagem lá fora. Finalmente ela abriu a boca e disse algo. Ela disse que o amava e entendia que ele ainda era casado e que esperaria o quanto fosse pra ser dele completamente. Mas a frase não assustou tanto André, apesar dele nunca ter sido casado e de ter bem menos idade do que estava aparentando agora. O que mais chamou a atenção dele foi que a frase foi totalmente pronunciada em inglês! Ele sabia um pouco de inglês, algo raso demais para entender tão perfeitamente a frase balbuciada por ela.

Ele abriu seus lábios e, sem pensar, disse que a amava tanto que nada poderia deixá-los separados, e disse tudo em um perfeito inglês cheio de sotaque que ele nem imaginava possuir.

André se sentou na cama e encostou a mão na testa em uma profunda demonstração de confusão. Ela se levantou e deixou o lençol deslizar por seu corpo, fazendo aparecer o seu corpo nu, como o dele, e o abraçou pelas costas deitando sua cabeça na nuca de André e enlaçando sua cintura com as pernas.

— Oh Lucy, eu amo seu corpo, amo a leveza de sua pele. Você era exatamente o que eu busquei toda a minha vida...

Pronunciando essas palavras, André percebeu que ele não era mais André. Fechou os olhos e não procurou mais respostas. Ele sabia pra onde deveria ir e porque. Sabia que finalmente a eterna liberdade que esperou a vida inteira tinha se tornado verdade. A estrada agora estaria livre o bastante para que corresse de olhos fechados, sentindo a brisa da tarde em seu rosto e o Sol a esquentar de maneira acolhedora o seu coração. Se lembraria pro resto da vida do tempo que se chamava André e da sua procura silenciosa por algo que todos procuram, mas que ninguém realmente está disposto a correr os riscos para que a busca chegue a um fim. Algumas pessoas sonham com algo, mas desejam nunca conseguir chegar até seus objetivos, isso acontece porque a busca as preenche tanto que a necessidade da conclusão desta desaparece por completo. Elas costumam sentir-se incompletas, mas estão na verdade mergulhadas no mais doce objetivo de suas vidas.

Noah (como agora André era chamado) acordou em mais uma de suas manhãs e percebeu que Lucy era a parte mais importante de sua liberdade. Alguém que fazia parte de sua busca e que estranhamente foi dada a ele de presente. Nessa mesma manhã, quando completava 65 anos (muitos anos depois de ter deixado de ser André), ele abriu um jornal antigo e viu uma foto que o deixou sem falas. A manchete dizia que um brasileiro havia acordado do coma vinte e três anos depois. Ele falava e andava naturalmente e apresentava uma força de vontade incrível só que havia esquecido tudo, absolutamente tudo da sua vida antes do acidente. Ele sentia-se feliz pois dizia que havia encontrado finalmente algo que procurava a vida toda: uma família.

2/08/2007

A CHAMA

Pensaram, em sua infame vaidade
Que suas armas e sua força, seus prantos e religiões
Poderiam fazer-me sucumbir em meu próprio mundo.

Cortaram minha cabeça e mandaram para o norte
As cidades mais altas e cheias de justiça
E lá esperaram que ela apodrecesse como minhas idéias

"Um símbolo", brandaram, "uma corrente"...
Mas minhas memórias ainda estavam lá
Acendendo em cada um a chama da verdade

Meu próprio espírito se tornou adorado
Minha própria mente, a razão do questionamento
Minha própria identidade, o motivo de arrependimento.

Cortaram meus braços e levaram para o oeste
Para as terras de povos humildes e trabalhadores
"Um símbolo", disseram, "uma corda em seus pés"....

Meus músculos ainda estavam contraídos
E os olhos mais curiosos e impressionados entenderam
Que eram, assim como eu, feitos da mesma areia e pó

E minha força se flamejou nos peitos abertos dos pequenos
Aqueles que ninguém queria ter que olhar
Por ter preguiça de abaixar a fronte.

Cortaram minhas pernas e levaram para o sul
Para as terras onde a lei era a de um deus ausente
Onde religiões domavam, como cavalos mansos, o povo

E para aqueles que as olhavam, viam o suporte de minha força
Entenderam que em mim nunca existira um ponto fraco
Nunca em nenhum momento, os joelhos haviam tocado o chão

E o poder germinou em seus sonhos e seus punhos se cerraram
E apanharam suas armas e rumaram para leste
Para onde haviam enviado o meu tronco.

E lá chegando, os povos de todos os lugares
Encontraram cravado ao chão, criando raízes de sangue
Como árvore centenária e como fortaleza

E entenderam que minha vida era eterna, enquanto houvesse vida
E entenderam que não adiantava por uma perna após a outra
E entenderam que que os quatro pilares da razão estavam apodrecidos

E rumaram juntos pela liberdade de todos os sonhos
E destruíram aqueles que estavam no alto, um por um
Assim como os cânceres de suas próprias convivências

E finalmente, sem ninguém sentado acima deles
Olharam para o céu e perceberam que haviam muitas estrelas
E que assim como elas, eles finalmente poderiam ser livres
Assim como eu fui.